Usucapiao

A aquisição da propriedade pela usucapião

Usucapião ver do latim uso capio, que significa “tomar a coisa pelo uso”

Entendendo o conceito de usucapião

Imagine uma família com duas irmãs, chamadas Ana e Lia. Elas são muito próximas uma da outra. Ana tem uma calça, que nunca usa. Sua irmã, Lia, por sua vez, adora essa calça, vive usando esta roupa de Ana, sem nem pedir emprestado, simplesmente pega e veste. Ana, nem Liga. Passado um tempo, a calça nem fica mais no guarda-roupas da Ana, fica direto guardada na gaveta da Lia. Depois de um tempo assim, em que a Lia ficou vestindo a calça para ir à escola, ver os amigos, ir ao cinema, você sabe dizer de quem é a calça? Pois é, não é mais da Ana, ela passou a ser da Lia.

A usucapião é o nome que se dá a essa aquisição da propriedade de algo pelo uso, pacífico (a dona da coisa não contestou, não reclamou, não se opôs), contínuo ao longo de um período de tempo, em que uma pessoa se apossa da coisa como se ela fosse a dona daquilo e a outra se comporta como se não fosse dona do bem. É diferente, portanto, de um empréstimo, de uma locação. A calça não seria de Lia se, a cada vez que ela fosse usar, tivesse que pedir emprestado para Ana, se a Ana, de vez em quando, se negasse a emprestar a calça, se a calça continuasse no guarda-roupas de Ana. Nesta situação, a calça continuaria sendo de Ana.

Origens

A usucapião data da Antiguidade, sendo um direito adquirido pelos cidadãos romanos quando usavam continuamente (por 2 anos) coisas móveis (como roupas, utensílios, ferramentas) ou imóveis (como as casas). Com o passar do tempo, o peregrino – que vivia livremente em Roma, mas não era cidadão romano – passou a ter o direito à uma espécie de “prescrição aquisitiva”, fundada na posse por longo tempo da coisa (10 e 20 anos), em que o legítimo dono não perdia a propriedade, mas o direito à posse, por negligência. A partir de Justiniano, a usucapio e a praescriptio fundiram-se em um único instituto jurídico, garantindo ao possuidor longi temporis o direito de reivindicar a propriedade e não simplesmente exercer a posse.

No Brasil, antes do Código Civil de 1916, a prescrição longissimi temporis se consumava em 30 anos (para os bens particulares) ou em 40 (para os bens públicos). A partir do Código Civil de 1916, o direito brasileiro orientou-se por uma visão dualista desse tema, tratando a prescrição extintiva (perda da propriedade por displicência) na Parte Geral e a usucapião (aquisição da propriedade pela posse) no Livro do Direito das Coisas. Essa escolha também aparece no Código Civil atualmente vigente, editado em 2002. É importante ressaltar, entretanto, que desde a vigência do Código Civil, os bens bens públicos não podem ser adquiridos por usucapião, conforme a súmula nº 340 do Supremo Tribunal Federal (STF), aprovada em Sessão Plenária de 13/12/1963, e posteriormente codificada no artigo 102 do Código Civil, que diz: Os bens públicos não estão sujeitos a usucapião.

Características

Modo originário de aquisição do bem

Considera-se que a aquisição da propriedade de certos bens e direitos por meio da usucapião se dá de modo originário, ou seja, não há “transmissão” da posse, ou “negócio jurídico” entre aquele que perde e aquele que adquire a propriedade. Quando o possuidor exerce o poder de fato sobre a coisa, por muito tempo, a posse e a propriedade vão se tornando uma coisa só. É como se os fatos transformassem os direitos e consolidassem a propriedade em favor da pessoa que exerce o domínio sobre o bem. Ao mesmo tempo, o titular do direito desidioso, que não teve zelo, não cuidou de seu patrimônio, perde a titularidade em favor daquele que usa e dá sentido à coisa.

São eventos que ocorrem simultaneamente, sem que haja vínculo entre o novo e o antigo proprietários. Assim, o imóvel usucapido é livre de ônus, de gravames, hipotecas etc. que eventualmente existiam antes da usucapião: o direito real de propriedade adquirido pela usucapião é pleno, cristalino, limpo. E mais, por ser forma originária de aquisição, sobre ela também não incidem tributos como o Imposto de Transmissão de Propriedade sobre Bens Imóveis (ITBI), por exemplo.

Efeitos retroativos da usucapião

A usucapião pode ser reconhecida pelo Poder Judiciário ou pelo Notário (responsável pelo Cartório de Notas). Conforme jurisprudência majoritária, pacificada no Superior Tribunal de Justiça (STJ), a sentença proferida no processo de usucapião possui natureza meramente declaratória (e não constitutiva), pois apenas reconhece um direito já existente.

A sentença declaratória é aquela em que o Poder Judiciário reconhece existência ou a inexistência de um direito em um determinado momento anterior à sentença. Já a sentença constitutiva é aquela em que o Poder Judiciário cria, extingue ou modifica o direito previamente existente, alterando o status jurídico a partir do momento em que se manifesta sobre o assunto.

Considerando que o status jurídico já existia quando do reconhecimento de uma situação jurídica por uma sentença declaratória, os efeitos dessa declaração remontam à data em que a situação que conferiu esse direito se instalou. Por exemplo, quando uma pessoa morre, os herdeiros passam imediatamente a ter o direito sobre os bens deixados pelo falecido. Portanto, mesmo que a sentença de reconhecimento de paternidade demore a sair, o filho reconhecido tardiamente terá direito ao mesmo quinhão da parte legítima que os seus irmãos.

Por outro lado, na sentença constitutiva, os efeitos não operam retroativamente, eles só valem da sentença para frente, pois algo novo foi criado. É o caso da sentença de divórcio, que altera a relação jurídica entre os ex-cônjuges a partir dali.

A maioria da doutrina e da jurisprudência entende que a sentença que reconhece a usucapião é declaratória. Os artigos 1.238 e 1.241 do Código Civil dizem expressamente que o juiz “declarará” a usucapião.

Isso significa que a posse prolongada passa a produzir efeitos jurídicos desde o momento em que os demais requisitos legais foram cumpridos, ou seja, os efeitos retroagem (são considerados ex tunc).

Desnecessidade do Registro no Cartório de Registro de Imóveis para produzir efeitos

Para os bens imóveis, tanto a sentença quanto a ata notarial que declaram a usucapião devem ser levadas para registro no Cartório de Registro de Imóveis (CRI), para dar a devida publicidade ao evento. O registro da usucapião no CRI não é necessário para constituir o direito, mas apenas para dar publicidade a uma aquisição originária já ocorrida e alertar terceiros de que o bem possui novo dono. Além disso, a partir do registro, aquele que adquiriu a propriedade poderá regularizar o próprio registro cartorial, além de poder vendê-la, alugar, etc.

Tipos de usucapião de bens imóveis

Usucapião Especial

A usucapião especial é aquela cuja aquisição ocorre em prazo mais curto (em 2 ou 5 anos) e com limite de área, para imóveis urbanos (até 250 m2) ou rurais (até 50 hectares).

Usucapião Ordinária

A usucapião ordinária ocorre sem limite de área, mas é preciso ter justo título e boa-fé. Em geral, ocorre em 10 anos de posse ininterrupta, podendo ser reduzida a 5 anos se o possuidor comprou o imóvel e depois o registro foi cancelado no respectivo cartório, desde que tenham estabelecido no imóvel a sua moradia, ou realizado investimentos de interesse social e econômico.

Usucapião Extraordinária

Na extraordinária não há limite de área, independe de justo título ou de boa-fé, e o prazo é de 15 anos de posse ininterrupta, sendo reduzido a 10 anos, caso o imóvel seja utilizado como moradia habitual ou para atividades produtivas.

Justo título

Justo título é um ‘documento’ capaz de iludir uma pessoa, que acredita estar comprando a propriedade dentro da legalidade, quando na verdade esse documento não serve para transferir formalmente a propriedade. É um documento que parece legítimo e válido, com potencialidade de transferir direito real, a ponto de induzir qualquer pessoa ao equívoco sobre a sua real situação jurídica perante a coisa. Neste sentido, o Enunciado nº 303 do Conselho de Justiça Federal afirma: “Considera-se justo título para presunção relativa da boa-fé do possuidor o justo motivo que lhe autoriza a aquisição derivada da posse, esteja ou não materializado em instrumento público ou particular. Compreensão na perspectiva da função social da posse”.

Por esse motivo, essa usucapião rural que está disciplinada no art. 1.242 do Código Civil ocorre em 5 anos. E, também, pelo justo título, não faria sentido limitar o tamanho da propriedade a 50 hectares. Neste caso, o prazo é menor, pois a Lei busca corrigir o vício originário, da pessoa que “comprou” uma gleba rural sem o título adequado e passou a exercer a posse ininterrupta, com boa-fé, mas formalmente não poderia transferir o seu domínio porque o documento tem um defeito insanável.

A esse respeito, existem três modalidades muito comuns de vícios que podem ser consideradas como justo título nas aquisições pela usucapião: na primeira delas, a venda é feita por quem não é dono (venda a non domino); na segunda, quem vende é o proprietário, porém o título tem um defeito que o torna inválido (por exemplo, se é feito sem a devida autorização do cônjuge, se o titular é uma criança); e, por fim, na última, o título não consegue produzir efeitos, pois ele não atende a algo essencial para produzir efeitos (por exemplo, não está escrito na língua oficial).

Boa-fé

Considera-se que uma posse é de boa-fé quando a conduta do possuidor não destoa do comportamento esperado para qualquer pessoa nas mesmas circunstâncias, daquilo que o homem médio faria. Se o possuidor agiu com os cuidados e cautelas normais na aquisição da posse, considera-se que ele agiu de boa-fé. 

Quadro com os principais tipos de usucapião de bens imóveis.

Referências

FARIAS, Cristiano Chaves, ROSENVALD, Nelson. Curso de Direito Civil: Reais (Volume 5). Brasília, DF: Editora Juspodivm; 17ª edição, 2021.

SCAVONE JR., Luiz Antonio. Direito Imobiliário – Teoria e Prática. Rio de Janeiro, RJ: Editora Forense, 15ª edição, 2020.

Site do TJDFT.